27 de março de 2010

Cap. VIII - A Preto e Branco


Sem fazer barulho, Catarina levantou-se da cama e dirigiu-se à sala. A casa estava praticamente vazia: Rodrigo fora passar a primeira semana de férias a Macau, e os outros dois com as respectivas famílias. Guilherme dormia profundamente.
Ela não conseguia parar de pensar em tudo o que acontecera naquele maldito "Beco da Estrela", na noite do encontro com o homem-gato. Aquela mulher assustadora, sem alma; as crianças que Guilherme descreveu, quando acordaram; o Sombra que desapareceu assim que ficou 'one on one' com Guilherme. Achava que havia uma ligação, mas não conseguia descobrir qual. Sempre que pensava naquela noite, ficava com muito medo. Apercebeu-se que desde a primeira vez que a vira, o Sombra a queria manipular de alguma forma, talvez atacá-la de novo.
Instalou-se na chaise-longue da sala e relaxou. Tinha que voltar a encontrar Toga. Questioná-lo sobre tudo; ele sabia mais que aquilo que mostrava saber, e disso ela tinha a certeza. Fechou os olhos, com o luar a afagar-lhe o rosto...

Deu por si a acordar com um forte cheiro a morangos. Estava tapada com cobertores, o que era estranho; não se tinha tapado antes de adormecer. "Guilherme", pensou, com um sorriso a aflorar-lhe os lábios. Levantou-se e dirigiu-se ao quarto, desiludida por não ter conseguido sonhar. "Deve ser do cansaço..." constatou, deitando-se ao lado do namorado. Assim que se tapou, começou a sentir um calor tão abafado que não aguentou dois minutos tapada. Deixou-se descoberta, e começou a recear estar com febre. Levantou-se novamente, desta vez dirigindo-se à casa-de-banho, mas assim que saiu do quarto deparou-se com uma divisão completamente diferente. Era uma espécie de grande salão, decorado para um copo-de-água, mas parecia estar assim à muito tempo e nunca ter sido usado. O bolo de casamento, coberto de chantily e morangos, estava em cima da mesa mais central, rodeado de pratos de sobremesa e copos de champanhe meio cheios. As mesas dos convidados, perfeitamente decoradas com centros de mesa, ostentavam um ar requintado e ao mesmo tempo sombrio, já que a loiça era ornamentada a preto e vermelho sangue. Caminhando por entre as mesas, reparou também nos candelabros de cristal, que emanavam uma luz fraca e intermitente.
Do quarto veio o som de algo a partir-se. Um copo, talvez. Catarina dirigiu-se para lá de novo. Porta trancada. Bateu, tentou falar, mas não tinha voz. Olhou em redor mas a porta do quarto era a única que ali estava. Foi então até uma janela, mas assim que se encostou a ela, sangue começou a escorrer pelos vidros, assim como pelos candelabros e centros de mesa. O bolo vertia sangue pelos enfeites, e as toalhas das mesas ficaram ensopadas em menos de nada. Catarina começou a entrar em pânico e tentou gritar. Nem um som. Entrando em desespero, sentiu-se estúpida ao finalmente se lembrar da névoa; fechou os olhos e concentrou-se. Sentia o sangue a encher a sala, a chegar-lhe aos tornozelos... A névoa não aparecia e ela começou a tremer de esforço: tinha que sair dali. Acalmou-se, respirou fundo e, enquanto o sangue lhe chegava aos joelhos, concentrou-se mais uma vez: o homem-gato, o beco da estrela, o rio no meio da praçeta. Quando conseguiu finalmente materializar um pouco da névoa, não pensou duas vezes e saltou na sua direcção.
Caiu dentro do rio. Nadou até à superfície e saiu da água completamente seca. Olhou em redor e estava na mesma rua onde se dera o confronto com o Sombra. Estava deserta, à excepção dela mesma e do vento agressivo que ali passava. Mesmo assim, Catarina não se sentia sozinha. Era como se dezenas de pessoas lhe fizessem companhia, apertando-se umas contra as outras. Vagueou rua abaixo, passando pela entrada do beco, na direcção contrária ao rio. Deu-se então conta que naquele espaço, tudo era a preto e branco, excepto o rio e o céu. As casas, cinzentas e mortas, serviam como muros de um labirinto. Quanto mais Catarina andava, mais sentia que devia caminhar mais rápido, até chegar ao ponto de alternar entre passo rápido e corrida. Virou à esquerda e começou a descer a rampa. A meio, ouviu um miado familiar. Era rouco e arranhado, quase como um chamamento. Parou para ouvir. O som vinha de uma casa de 2 andares que estava mesmo atrás de si, rodeada por velhos muros de pedra, com um portão de tinta descascada. Sentia o corpo a tremer como se tivesse frio, o cérebro a recear o que ia encontrar, o medo a correr-lhe nas veias. Empurrou o portão, que se abriu sem dificuldade, e passou para o lado de dentro. Encostou-o, subiu cautelosamente os dois degraus que a separavam da entrada, e tocou à campaínha. Não se ouviu nada. Bateu à porta três vezes, e a porta abriu-se. Estava destrancada, mas mesmo assim ninguém veio atender. Arrependendo-se de cada passo que dava, mas apostada em descobrir a origem daquele miado, seguiu em frente, fechando a porta atrás de si.

1 comentário:

  1. um episódio na casa dos horrores .. mais um bom momento de arte fantástica lol

    onde é que tudo isto vai dar?!

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