18 de setembro de 2011

A Razão dos Mil Mundos

A saudade é uma pessoa. É um sorriso, um abraço, um beijo. É o prazer de querer, o desejo de ter, a incapacidade de tocar quando se quer. Quando se sente que se deve. E num país muito próximo ao de manteiga vivia, sozinha, uma mulher. Uma linda mulher, de longos cabelos cor de fogo, olhos verde-água, alta e esbelta. Essa mulher vivia sozinha porque afastara todas as pessoas de si. Todos os que a amavam, todos os que a adoravam, foram afastados pela sua maldade e arrogância. Ela sempre tratara mal as pessoas que a rodeavam, e assim eles desapareceram, como uma simples sombra desaparece no meio da escuridão. Numa noite em que fechei os olhos, pronto para uma viagem, aterrei no jardim da sua casa. Uma espécie de insecto, um híbrido de borboleta e pirilampo, pousou no meu ombro por uns segundos e depois levantou vôo muito devagar, voando em direcção à casa. Olhando em volta, pude ver que aquela casa estava isolada de tudo. Era apenas uma pequena habitação no meio de uma vasta e vazia planície. A lua cheia brilhava lá no alto, e reconheci uma coruja amarelada da minha viagem anterior. Sorri e dirigi-me à casa. O insecto estava pousado na janela, de onde vinha uma trémula luz avermelhada. Dei a volta à casa; a porta estava aberta. Entrei e chamei por alguém, mas não obtive resposta. A sala estava decorada com muitos bibelots em cima de várias mesinhas, e ao longo das paredes estavam molduras e mais molduras com fotografias de pessoas que dormiam. Um cheiro a manjerico e salsa vinha das outras divisões, e parecia ser da cozinha que vinha a tal luz. Entrei e vi a mulher deitada no chão. Parecia dormir, como quem merece um descanso depois de um dia intenso de trabalho - não fosse o sangue à sua volta.
Senti perigo, urgência. Senti necessidade de chamar alguém, de pedir ajuda, de salvar aquela mulher. Mas no fundo, sabia que ela já estava morta há muito tempo. Desde a criação desse mundo, que ela estava morta, apesar de caminhar todos os dias nele. A sua alma, corrompida pela dor e ódio, manifestava-se agora à minha frente. O corpo continuava deitado, morto, mas o reflexo da sua existência olhava-me com olhos de
raiva, como um igual.
"- O que queres daqui?" perguntou-me, com a voz impregnada de maldade, enquanto cerrava os punhos.
"- Perceber.", respondi.
Ela olhou para cima e a casa começou a desfazer-se em areia. Tudo se estava a desfazer, os retratos, as paredes, as luzes. Ficava apenas o céu, e o corpo morto, no vazio. Os cabelos do fantasma começaram a brilhar, a ficar transparentes como... vidro.
"- Mataste-me, faz muito tempo. Mataste-me e às minhas irmãs. Mataste-nos a todas apenas por receio do desconhecido, por não nos conheceres. Mataste-me na noite em frente àquela casa importante para ti, e naquele quarto escuro era eu a tua amiga. E morri, desvanecida pelo teu toque, pois no fundo querias que desaparecesse."
"- Não sei do que falas", arrisquei, a medo.
"- Não me mintas. Tenho-te seguido; tenho-me infiltrado em todos os teus sonhos, até nos mais puros. No mundo de manteiga, era eu a alma das cobras. No mundo do miúdo que morreu, era eu quem possuía o corpo do pai. Nas montanhas frias, fui eu quem ordenou aos homens que cortassem a língua da mãe da menina de cabelo azul. Sou eu a origem dos teus sonhos, das tuas histórias, dos teus relatos."
Observei-a.
"- Tudo isto porque te matei?"
A sua pele cintilou e tornou-se transparente, cristalina.
"- Não. Tudo porque não me perguntaste porque te seguia."
"- E por que o fazes?"
A pele começou a estalar.
"- É tarde para fazeres essa pergunta, e é ainda mais tarde para te responder. Saberás a resposta à tua pergunta, um dia. Quando mereceres."