25 de abril de 2010

Cap. XI - Apoteose do Guerreiro I


Olhava em frente, fixamente. A rua estava deserta desta vez. Aliás, estava sempre deserta, à excepção da noite em que lutara contra aquela mulher. Reviu todos os momentos, sabia que naquele sonho se encontrava uma pista que explicasse o porquê da morte de Catarina. Havia algo que não batia certo, algo pelos vistos imperceptível mas que Guilherme compreendia duma forma inconsciente.
Passos vindos do beco ecoavam pela rua. Respirou fundo e fechou os olhos. Não podia ser; não de novo. Ela era apenas produto da sua mente, do seu cérebro, da sua saudade. Os passos aproximavam-se, mas Guilherme manteve-se na mesma posição. Se não pensasse nisso, a ilusão desapareceria.
"-Por que estás aqui?"
A voz de Catarina soou como a melodia duma harpa num dia de chuva. Triste, nostálgica... Perfeita. Guilherme virou-se e abriu os olhos. A três passos, uma espécie de holograma fantasmagórico sorria-lhe ternamente. Os cabelos negros e azuis, os lábios carnudos e vermelhos, a pele suave e sem defeitos. Uma agonia enraízou-se no seu coração, envolvendo-lhe a visão e a mente. Sentiu-se tonto, mas manteve-se firme, por ela. Devia mostrar que era forte, que era guerreiro. Um guerreiro campeão.
"-O que estás aqui a fazer? Não é este o teu lugar." repetiu ela.
As lágrimas toldaram a visão de Guilherme. Não podia embarcar na ilusão, não podia aprisionar-se a sentimentos de perda que o levariam a perder-se de vez. Chamou a si toda a calma que conseguiu, e falou.
"-Não. Tu é que não pertences aqui. És apenas uma ilusão, não existes mais. És um sonho. Sonhaste sem me avisar, mas eu encontrei-te. Não devias ter fugido daquela forma de trás de mim... Ao morrer, acabaste com a minha vida também."
Ela continuava a sorrir. Uma assombração linda, incólume. Como sempre a conhecera. Suspirou, enquanto mexia nos longos cabelos, e olhou para eles.
"-Não. Estás errado. Deves viver. Mas não aqui, não neste lugar. Não é aqui que pertences."
"-Pára de repetir isso!! Eu pertenço onde quer que vá, eu sou o Campeão deste Mundo!!"
Catarina soltou uma gargalhada arrepiante. Malévola, trocista.
"-O campeão de um mundo, que nem o amor da sua vida conseguiu salvar. Não posso nem imaginar o que será de um mundo inteiro, tendo um falhado como campeão." - olhou para ele de repente, os olhos inundados de raiva - "-Não vales nada. Não me conseguiste salvar a mim, nem à tua irmã, quando eras pequeno. Não consegues salvar ninguém. Nem uma mera sombra conseguiste derrotar. O teu poder baseia-se numas luvas de pedras preciosas e nalguma inteligência.. Ah! Pronto para me fazer desaparecer, é?"
Guilherme materializara naquele momento as luvas cobertas de jóias nas suas mãos. Tinha o coração a transbordar ódio. Não por Catarina, mas por si mesmo, por não ter sido capaz de salvar a mulher que amava, nem a irmã que sempre protegera. Olhou para Catarina e sentiu outra tontura. Fechou os olhos, respirou e voltou a abri-los. Ela já não estava ali. No seu lugar, uma pequena gatinha do mais puro branco, miava e ronronava enquanto se roçava nas suas pernas. Na sua testa, uma pequena mancha azul brilhava. Guilherme baixou-se para lhe tocar, mas ela afastou-se. Ele tentou de novo, mas a gata assanhou-se e os seus pêlos tornaram-se enormes agulhas, afiadas e prontas a ser disparadas. Do beco, outro gato veio, este prateado e maior. Toga. Também ele se assanhou, mas não afiou o pêlo. Observava apenas fixamente Guilherme, enquanto se punha à frente da pequena gata branca. Os olhos de Toga... Azuis escuros, mas com pequenos pontos brilhantes "dentro" deles. Toga avançou, a miar como quando os gatos vão atacar outros gatos, e Guilherme preparou-se. Lutar contra Toga seria aterrador. Desenvolvera um sentimento de companheirismo por ele, considerara-o um aliado. Mas agora, neste momento, não tencionava perder.

20 de abril de 2010

Cap. X - O som do adeus


Na sala, Catarina permanecia deitada. À espera. Tentava perceber se o copo era real, se a sala era real, se ela era real. Não tinha coragem para se levantar. Tinha medo, muito medo, de ter ficado presa no outro mundo. O mundo que visitara tão ocasionalmente, quase de forma extravagante, de forma inconsequente, de forma perigosa. Respirava pausadamente. Se estivesse no mundo dos sonhos, qualquer movimento brusco poderia despoletar uma variedade de reacções em efeito dominó. Com a mão esquerda beliscou as costas da mão direita. Doeu. Olhou lentamente em redor; a sala permanecia imaculada. Tentou então materializar a névoa, fechando os olhos e parando de respirar. Dentro dela, uma ansiedade esmagou-lhe o coração, já ele envolto em medo. Abriu os olhos e expirou, aliviada. Nada. Estava no mundo real, na divisão ao lado do quarto, onde adormecera havia três horas, como pôde constatar pelo relógio digital do leitor de dvd. Levantou-se e dirigiu-se ao quarto. Abriu a porta. Guilherme continuava a dormir. Parecia nem respirar, tal era calmo o seu sono. Catarina sorriu. Deitou-se ao seu lado e abraçou o seu corpo destapado. Estava calmo. Catarina beijou-o no pescoço, aliciando-o a acordar. "Guilherme", sussurrou-lhe ao ouvido. De repente, Toga apareceu-lhe na mente. Sentiu perigo. Agarrou-se a Guilherme e fechou os olhos. Queria esquecer, nem que fosse por instantes, aqueles sonhos malditos. Queria dormir, não sonhar, estar com o amor da sua vida...

As luzes da ambulância acordaram Guilherme. Uma tragédia. Saiu do quarto para descobrir Rodrigo na sala, a chaise-longue rodeada de paramédicos e polícias. Olhou para Rodrigo, que não conseguiu olhá-lo nos olhos. Avançou para a causa das visitas indesejadas.
Catarina. Serena, calma, como que adormecida. As suas madeixas azuis estavam perfeitamente alinhadas com o resto do negro cabelo. Parecia pronta para ir para a faculdade. Guilherme sentiu o coração a ficar pequenino. O médico-legista declarava naquele momento "morte natural", mas Guilherme fixara-se numa linha brilhante no peito de Catarina. Uma linha brilhante, prateada, comprida. Como um pêlo de gato. Um copo caiu e partiu-se, assim que Guilherme recuou. A sua vida, acabada.

19 de abril de 2010

Origens

Uma visita ao início. O começar de novo das nossas vidas, definitivamente fora da bolha, motiva-nos a sermos melhores. A sermos (lá está) pacientes, compreensivos, ponderados, expectantes. Amigos. Poder retornar ao zero seria perfeito. Poder voltar a sonhar, sem se ser julgado como num tribunal de consequências, sem medo daquele e daquela, imune à deturpação da mente. Sorrir só porque sim, porque estamos felizes, porque a vida nos sorri de volta, porque os amigos não nos traíam e o veneno era exclusivo das cobras, escorpiões e outros que tais.
A janela. A brecha da bolha. Onde o mundo se mostra a nós como é para os outros. Cruel, indeciso, confuso. As acções, o sibilar encharcado em veneno, os olhares que lançam flechas de raiva, a importância do fútil.
A nossa visão das coisas, o não querer saber, a superioridade, o altivismo. É como uma sueca: devemos jogar em equipas, pensar que o parceiro pode até ter um bom jogo mesmo que o nosso nos pareça desesperante, e na próxima ronda quem sabe sejamos nós a ter os melhores trunfos na mão. Dar algo de valor quando a vaza está garantida, sentirmo-nos enganados quando é cortada, contar e planear o que jogar. Mas ser capaz de, no meio disto tudo, manter conversas com pessoas que não jogam por opção, que preferem ter as mãos livres e as mentes desocupadas.
Na origem de tudo o que nos rodeia, o que permanece para nós, somos nós mesmos. Os momentos, as ideias, até mesmo as bebedeiras ficam, alturas em que sorrimos e rimos e por vezes até choramos. Uma sigla que nem mesmo tu conheces fica na minha mente, de hoje para sempre. JBFPPM. Para mim, significa "origem".

16 de abril de 2010

atalhos

Chegar, falar, conhecer. Rir e olhar nos olhos, sorrir e desviar o olhar, sem medo mas com algum pudor. Timidez à flor da pele, que bloqueia e inibe, que desaparece apenas com o toque sublime. Um beijo. Dois. A emoção do novo mundo, as palavras reconfortantes, a preocupação, o bem-estar, a sensação de querer mais. Não vás pelo atalho, segue o caminho que está mesmo diante de ti. Conta-me como é o teu mundo, o que faz de ti alguém tão poderoso, se há lugar para mim. Abraça o sorriso e abre as portas à chegada de um novo habitante. Espera, sorri, constrói.
Ser paciente. É ser melhor, mais inteligente, mais tolerante. É ser mais.

13 de abril de 2010

another dejá vù

Morte. Desespero.
Morte. Esperança.
Saudade. Vida. Alguém.
Um aperto, uma aflição. Um coração.
Mágoa, sentimentos que rodopiam em torno do meu 'eu' perdido no oceano, no epicentro do caos, sem ajuda. Só.
Lutar, guerrear, vencer, desistir, desesperar, morrer.

Os teus olhos são lume, são carvão a arder, são fogo azul que consome o meu ser, são dor, são raiva, são prazer. Carbonizam a mente e varrem as memórias. Cinza putrefacta, com cheiro a maldade, com cor de saudade, perfeita e sem idade.
Explode a alma, que estilhaça e se desfaz, descendo pelo caminho da ilusão, atravessando o turbilhão de ironias e embatendo contra o chão, desistindo de sonhar, não querendo mais amar, rendendo-se à desilusão. Rasga o ódio, parte a dor. Despede-te do amor.

2 de abril de 2010

Cap. IX - Escada


O hall de entrada não tinha nada para além de uma cadeira raquítica de frente para a porta, e um castiçal de parede com uma vela apagada. A pouca luz que passava através da janela chocava contra a cortina escura, dando ao hall um aspecto sombrio. Catarina avançou para lá da velha cadeira e observou o corredor. Teias nos cantos das paredes, um tecto sem candeeiros e pintado de verde amarelado. O corredor era comprido e tinha portas e mais portas de ambos os lados. Ao fundo, uma escadaria em caracol alcançava o primeiro andar. Avançando, cada porta lhe transmitia uma sensaçao diferente. Alegria, medo, inocência, ansiedade, terror, loucura. Achando mais prudente não entrar em nenhuma divisão, chegou às escadas e olhou para cima. Tudo escuro, era como se a meio houvesse um lençol negro que não lhe permitia ver o que se seguia. Ouviu o miado. Inspirando coragem, começou a subir os degraus de pedra, e assim que alcançou a escuridão, susteve a respiração, e continuou. Abriu os olhos e deparou-se com um espaço completamente diferente daquilo que pensara poder encontrar.
Estava num amplo espaço de pedra que a fazia pensar em masmorras de um qualquer distante castelo. As paredes gastas e esburacadas estendiam-se ao longo de muitos metros quadrados, e não se percebia bem de onde vinha a luz. Parecia emanar do ar em si, das pedras, dela mesma. Subiu o último degrau e deu dois passos em frente. À sua direita, duas dúzias de degraus convidavam-na a visitar o patamar inferior. Outro miado. Vinha de baixo, e sem pensar, Catarina desceu rapidamente a escadaria de pedra velha. Chegando lá abaixo, varreu a área com o olhar, em busca do gato. Dirigiu-se a uma zona mais alta, rodeada de ferros pontiagudos, e tocou-lhes. Nesse mesmo momento, um grito ecoou da sua pele, um grito estridente e arrepiante. Outro miado. Olhou para os seus pés, e por baixo de si, numa câmara transparente, estava Toga na sua forma humana. Parecia falar, mas a única coisa que se ouvia eram miados ocasionais.
"-Não te preocupes, vou tirar-te daí!". Procurou algo pontiagudo que pudesse partir aquele vidro cinzento e duro. Puxou um dos ferros com a mão direita, e do seu braço saiu novo grito, desta vez mais estridente, mas Catarina ignorou-o. Não tinha medo de gritos. Bateu com o ferro uma, duas, três vezes. O vidro começou a estalar. Toga fez-lhe sinal que se afastasse, e ao mesmo tempo começou a brilhar. Assim que a viu recuar, Toga lançou milhares de pêlos-agulha que anteriormente não haviam tido efeito, mas que agora partiam o vidro que o aprisionava. Saltou para fora, e assim que aterrou, eriçou-se. Não estavam sós.
"-Põe-te atrás de mim, temos companhia. Não largues esse ferro!"
Catarina obedeceu, e começou a ouvir um barulho de asas ao longe. Esperaram. O ruído parecia aproximar-se deles a alta velocidade. De repente, nada. E depois, vindo não se sabe de onde, algo caiu perto deles e explodiu. Toga caiu com Catarina nos seus braços, desviou-a de si e saltou para a luta. Catarina demorou a perceber que estavam a ser atacados por estranhos animais parecidos com cães, mas não o eram. Toga defendia-se de todos eles, e Catarina sentiu que devia ajudar. Concentrou-se, materializando pequenas névoas ao redor de Toga, e gritou-lhe que os atirasse contra elas. Ele assim fez, e assim que tocavam nas pequanas fumaças, desapareciam antes de as atravessar, como se tivessem caído num buraco. Com o ultimo "cão" a ser lançado e a desaparecer, seguiu-se um breve momento em que se sentiram seguros. Quebrando esse momento, o Sombra dos olhos estrelados sobrevoava aquela espécie de gruta, parando no topo das escadas. Catarina e Toga prepararam-se para o confronto, mas o Sombra limitou-se a observá-los. Foi então que Catarina teve uma ideia: assim que ele os atacasse, ela lançar-lhe-ia uma névoa que o transportaria para outro sonho. Toga não resistiu à pressão e lançou-lhe pêlos-agulha; o Sombra reagiu e saltou, e Catarina chamou a névoa, que o envolveu. Sentindo-se vitoriosa por alguns segundos, baixou a guarda. A névoa desapareceu e no lugar do Sombra estava um corpo humano, que caiu com estrondo no chão de pedra, perto da entrada pela qual ela passara antes de chegar aos degraus. Sustendo a respiração, Catarina deu dois passos na direcção da escadaria. Toga mantinha-se em alerta, preparado para pôr os seus reflexos a trabalhar.
O corpo levantou-se antes que Catarina começasse a subir os degraus, e ficou hirto. Estava nú, mas imperceptível. Começou a descer as escadas a alta velocidade em direcção a eles, e no momento em que alcançava Catarina, um brilho colorido atingiu o corpo na cara, atirando-o contra a parede. Guilherme estava ali, com as suas luvas preciosas, ar de guerreiro, a alma de um Deus. Toga saltou e equilibrou-se numa viga da parede; o efeito surpresa deveria ajudá-los de alguma forma, e o corpo não tinha cara, o que lhe deu a sensação que ele não os via, apenas sentia as suas presenças.
O corpo começou a mover-se e a levantar-se. Catarina e Guilherme recuaram, e Toga eriçou o pêlo, pronto para atacar.
Um copo partiu-se, e Catarina acordou.