25 de novembro de 2011

Mistérios Da Vida - II

Abriu os olhos. Sentiu a cabeça pesada contra a almofada e voltou a fechá-los. Respirou fundo. Onde estava? Não sabia. Não havia sons, não havia aromas no ar, não havia nada. Ou era ela que não sentia nada. Talvez não pudesse, ou talvez não conseguisse. Só sentia o medo a pressionar-lhe a consciência, e desejou voltar a adormecer. Flashes cegavam-lhe a mente, gritando para serem vistos, mas Laura fugia deles. Não queria refletir no que acontecera, não queria lembrar a noite passada. Não queria pensar mais. Naquele momento, desejou desintegrar-se, desejou voltar no tempo e impedir que os seus pais se conhecessem, desejou não existir, simplesmente.
A noite passada fora o culminar de tudo. A droga, os cigarros, o álcool, a morte que a convidava a viver com ela. Abriu os olhos novamente e sentou-se na cama. Estava no seu quarto. Olhou pela janela e percebeu que era de manhã. Ainda estava presa naquele maldito dia. O sol acariciava-lhe a face, quando o que Laura mais desejava era a escuridão. Dava-lhe uma sensação quente, quando o que ela ansiava era o frio gélido que a congelasse. Começou a lembrar-se da sua irmã, e do destino trágico que a recebeu no seu 18º aniversário.

«Laura tinha vinte e três anos e a sua irmã, Joana, estava a um dia de completar dezoito anos, no dia em que ambas foram assaltadas à mão armada numa rua duvidosa da cidade do Porto. Em visita a amigas, as irmãs voltavam do cinema juntas quando foram cercadas por quatro homens encapuçados. Laura atravessou-se no caminho deles, e prometeu fazer o que fosse necessário para que deixassem a irmã ir embora. Olharam-na, tocaram-lhe, decidiram que iriam divertir-se com ela. Joana, lavada em lágrimas, compreendeu o olhar da irmã e começou a recuar. Virou costas e, assim que começou a afastar-se, o assaltante que estava agarrado a Laura ergueu a arma e, com o som de um trovão, baleou Joana nas costas. O ruído alertou os moradores, que ligaram luzes e vieram às janelas, mas que já só encontraram uma rapariga ruiva a gritar por ajuda, enquanto alguns vultos desapareciam nas sombras escorregadias da noite. Laura chorou durante a viagem até ao hospital, chorou na sala de espera, chorou com a chegada das amigas, e parou de chorar quando o médico veio e disse a palavra mais temida por quem espera... "Lamento". »

Apercebeu-se, assim, que ainda conseguia sentir. Pelo menos, sentir saudade de não ser ninguém.

24 de novembro de 2011

Mistérios Da Vida - I

Laura, nas suas botas pretas até ao joelho e vestido azul escuro curto, vagueava pelas ruas lisboetas mais movimentadas àquela hora avançada da noite, de cabelos ao vento e gabardina esvoaçante. Subindo a calçada, sentia os músculos a latejar devido a ter passado a noite a andar de um lado para o outro, sem destino, apenas à procura de... Nem ela sabia bem o que ansiava encontrar. Apenas se sentia perdida, desolada, sozinha. Sentia o olhar das pessoas, dos turistas, dos jovens universitários que passavam por ela e a assobiavam, gabando o seu porte feminino, a sua silhueta perfeita, o seu longo cabelo ruivo encaracolado, os olhos de um azul-água vivo, a cara de contornos que favoreceriam qualquer uma. Mas Laura não fazia caso dos piropos nem dos assobios. Queria apenas desaparecer... Evaporar no ar frio da noite, como o fumo do cigarro que fumava desde que começara a subir a avenida.
Com o cigarro no fim, atirou-o para a estrada pelo meio dos carros que passavam e virou para uma rua secundária. Estava no Bairro Alto que, àquela hora, estava a dar as últimas. Saltando de rua em rua, passou por um estrangeiro que a começou a seguir, e acelerou o passo. Os saltos não a ajudavam a caminhar rapidamente naquela calçada antiga, e por isso decidiu virar para uma rua sua conhecida e esconder-se num beco cuja entrada passava despercebida. Oculta nas sombras, viu o homem de cabelo muito loiro e olhos azuis passar rapidamente por ela sem sequer se aperceber da sua presença, e desaparecer na escuridão da cidade. Sentou-se no chão e abriu a mala. Com a seringa na mão, começou a rever a sua vida. O som dos gritos da sua mãe assaltou-lhe o pensamento, e tremeu de mágoa. Não fora desejada como filha, não fora amada como familiar, não fora querida como companheira. Órfã de pai desde que nascera, sentira sempre a ausência de uma presença masculina que a protegesse, que a orientasse, que a aconselhasse. Não sentia que tivesse feito alguma vez algo de útil por quem quer que fosse; sentia pelo contrário que a sua existência havia passado despercebida pelo mundo. Homens vis e cruéis haviam-se aproveitado da sua ingenuidade juvenil, e agora ali estava, como uma linda mulher de vinte e seis anos, sentada num beco, viciada em drogas pesadas, desesperada por encontrar uma porta de saída... Só queria ser feliz.