10 de dezembro de 2011

Regressar - parte 03 - Um Bilhete para o Adeus


Tomás não conseguia acreditar no que via. Estava totalmente diferente! Desviando o olhar do espelho, chegou ao fim do corredor e desceu as escadas a correr.
- Mãe? Estás aqui?! - gritou ele, mas não obteve resposta. Entrou em várias divisões, mas não reconhecia nada presente nelas. Tudo era diferente, e quanto mais via, mais se lembrava do que nunca tinha visto. Pessoas, lugares, situações... Era uma chuva de memórias para a qual ele não estava preparado. Parou na sala de estar, e respirou. Sentia a cabeça pesada, e de repente, soube que alguém o esperava no jardim. Dirigiu-se à porta das traseiras.
Sara estava sentada no muro que rodeava a casa, quando Tomás saiu da casa a correr e parou, a olhar para ela. A rapariga cantava, e a sua voz era surpreendentemente tranquilizante. Olhou dentro dos seus grandes olhos castanho-avelã que encontraram os seus verdes, e viu serenidade. Aproximou-se dela e abraçou-a, sentindo que a conhecia como se conhecia a si mesmo. Apesar disso, na sua cabeça uma pequena voz murmurou: "Mas quem é esta mulher?". Afastou-a de si.
- Quem és?
Sara sorriu.
- Olha em volta. Observa e absorve toda a informação que conseguires. Vou levar-te a um lugar.
Tomás olhou em redor. Atrás de si erguia-se uma enorme casa amarela, com telhado verde e grandes janelas com vasos de flores nos parapeitos. Parecia estar um pouco distante, o que era estranho, já que Tomás tinha acabado de sair dela. O céu alaranjado pelo pôr-do-sol estendia-se até ao horizonte, e assim ele apercebeu-se, ao descer o olhar para as redondezas, que aquela era a única casa daquela rua. Passavam pessoas de bicicleta, pássaros melodiosos e a brisa quente de um verão que começa a adormecer afagava-lhe a cara como quem se despede.
- Onde estamos?
Sara olhou fixamente para ele.
- Nesta realidade, esta é a tua casa. Vives aqui com a tua família, e o teu nome é Diogo. Tens vinte anos, estudas artes performativas e o teu sonho é ser uma estrela de cinema. Namoras comigo.
Tomás observava-a. Parecia não ter linhas de expressão; não demonstrava a mais ínfima emoção, e falava de forma quase automatizada. Ouvira o que ela acabara de dizer, mas não conseguia acreditar. Um gato correu para atravessar a estrada, fazendo dois ciclistas desviarem-se e subir o passeio ao lado do muro. Tomás teve uma estranha sensação de medo, urgência em fugir.
- De que estás tu a falar?
Ela saltou do muro e começou a andar. Tomás seguiu-a. Sentiu que ela o ia levar ao tal sítio. Sara caminhava de uma forma despreocupada, como se passeasse por ali diariamente. Atravessaram o jardim e saíram da propriedade. Lançando um último olhar à grande vivenda amarela, Tomás seguiu atrás de Sara, mas ela já atravessara a estrada e esperava-o no passeio oposto, de mãos entrelaçadas em frente à saia, com os longos cabelos loiros ondulados a brilhar com o reflexo do entardecer, e um sorriso enigmático a desenhar a primeira expressão que ele lhe via. Por trás dela, um bosque deixava o sol morrer entre os seus ramos, dando a sensação que a noite nascia atrás dela. 
Assim que pôs um pé na estrada, dois ciclistas apareceram, e atrás deles dois gatos, e atrás dos gatos um autocarro. A alta velocidade, os ciclistas desceram a rua, os gatos escapuliram-se para o canteiro da casa amarela e o autocarro travou bruscamente em frente a Sara.
- Não vens? - espreitou ela, inclinando-se para o lado. Tomás atravessou a rua cuidadosamente em passo rápido, e entraram juntos no grande autocarro azul, com o sol a desaparecer por completo no horizonte. Sara pediu ao simpático senhor:
- Um bilhete para o Adeus, por favor.

4 de dezembro de 2011

Regressar - parte 02,5 - Acordar

Aquela sensação fria e suave... Abriu os olhos. Estava de volta à sua cama, ainda com a almofada por cima da cabeça, mas algo estava diferente. Levantou a cabeça e pestanejou várias vezes.
O quarto parecia ser outro. Aliás, era outro. A cor escura a que se habituara nas paredes dera lugar a um cor-de-laranja cheio de vida que parecia sorrir, feliz. Tinha agora não uma mas três estantes cheias de livros dos mais variados temas alinhadas ao longo de metade da parede. Um suave cheiro a doce de limão entrava pela janela, acompanhado por melodias entusiásticas do que parecia ser um diálogo entre dois canários. Ao lado do roupeiro enorme estava um skate, e a meio da divisão uma poltrona, posicionada de frente para a janela. Se se sentasse nela naquele momento, ficaria completamente banhado pela luz do pôr-do-sol. A cama era grande como sempre fora, mas era diferente. Era macia e convidativa ao sono, o que fez Tomás deitar de novo a cabeça na almofada e espreguiçar-se, como quem acorda de uma longa noite de sonhos. Na mesa de cabeceira estavam uns óculos. Tomás esticou a mão para os agarrar, mas a cabeça doeu-lhe repentinamente. Dezenas de pontadas picavam-lhe a parte de dentro da cabeça, como se tivesse um ouriço-cacheiro de patas para o ar dentro do crânio. Via imagens a passar em frente aos seus olhos, recordações de que não se lembrava, memórias que não sabia ter vivido, medos que não conhecia e desejos que não desejara até àquele momento atravessaram-no, literalmente, de um lado ao outro; sentia uma corrente de ar frio a passar através do seu peito, do seu pescoço e da sua cabeça, e ficou tonto. Enterrou a cabeça na almofada e encolheu-se, sustendo a respiração durante uns segundos. Depois, respirando fundo várias vezes, levantou o dorso da cama e sentou-se, sem deixar os pés tocarem no chão. Instintivamente, pôs os óculos e olhou em seu redor.. Via agora tudo muito melhor, mas mesmo assim não percebia o que se passava. Estava no seu quarto, mas ao mesmo tempo sentia estar no sítio errado. A grande janela deixava entrar tantos raios de luz do pôr-do-sol, e isso transmitia-lhe uma sensação de tranquilidade imensa. Dirigiu-se à porta, e o cheiro mudou. Agora cheirava intensamente a chocolate, como quando se assa um bolo de chocolate no forno. Aquele cheiro era-lhe familiar. Levantou-se rapidamente e saiu do quarto. Precisava de ver a mãe, de perceber o que se passava, de saber que estava tudo bem... E parou a meio do corredor. E que belo corredor. Mas que casa era aquela, que lhe era tão familiar, e ainda assim, tão estranha? Vasos com plantas, belos quadros pendurados nas paredes, paredes essas decoradas com um belíssimo papel de parede de cor creme. À sua frente, um enorme espelho mostrava-lhe uma pessoa que não conhecia. Aproximou-se, e a pessoa do outro lado imitou-o. Virou a cara, e a pessoa fez o mesmo, e Tomás sentiu-se congelar de desespero. Estava completamente diferente! Cabelo loiro, olhos verdes, barba! Estava alto; demasiado alto para um menino de onze anos.
Mas por que estava a pensar nisso? Tinha vinte...
Não, tinha onze.
Vinte!

As vozes na sua cabeça não paravam. Não sabia quem era, nem por que o era, nem quando o era. Sentia-se ali mas não o estava, e simultaneamente não tinha como não estar. Olhou fixamente em frente: um espelho não mente.


2 de dezembro de 2011

Mistérios Da Vida - II.5

Sempre se orientara pela intensidade das luzes existentes na sua mente. Elas diziam-lhe o que fazer, quando, como, com quem e porquê. Pequenas ideias passeavam no seu cérebro, vindas da lareira da alma, e iluminavam a sua consciência: quentes, crepitantes, como uma pequena fogueira que arde, alegremente.
Mas agora as luzes tinham desaparecido. As pequenas bolhas de sabão com aspecto inflamável estavam apagadas, adormecidas, como a cinza que sobra de um incêndio, e por muito que Filipe tentasse decidir o que fazer a seguir, apenas uma pequena luz, trémula e tímida, restava. Uma luz solitária que lhe aquecia uma ideia: fugir. Fugir daquela cidade, daquelas pessoas cruéis que o conheciam desde criança e que o maltratavam, que o adotaram por capricho, por inveja dos seus conhecidos, por ambição de parecerem uma família interessante. Lisboa parecia a cidade indicada. Era grande, povoada o suficiente para "desaparecer" lá dentro, rica em cultura e distrações que o ajudassem, além de ter lá amigos que lhe garantiam entrevistas pormissoras em locais emblemáticos, em lojas de centros comerciais e até mesmo em dois ou três bares bastante lucrativos do Bairro Alto. Nunca sentira que pertencia ao Porto, e embora achasse a cidade linda, não era feliz. E depois daquela noite, daquela violência que o mantinha acordado havia horas e lhe apagara todas as chamas que o definiam, ele só pensava mesmo em fugir. Esperava que essa fuga o ajudasse a encontrar maneira de as reacender, para não se perder para sempre. Tinha de ligar rapidamente à sua melhor amiga: Laura.