22 de dezembro de 2010

Capítulo I.5 -"Out Of My Way"

Anabela e Mário namoravam há vários anos. Desde o preparatório. Tinham agora 20 e 21 anos, respectivamente, e o que os unia era o mesmo desde o início: amor. Embora apelidados de "Os Piegas", por não hesitarem em afirmar paixão eterna, todos os respeitavam e à sua relação. Mas recentemente, Mário andava a ser "perseguido" por uma rapariga da sua turma. Ambos no 3º ano do curso de Direito, era comum irem juntos para as mesmas aulas. Juntos, como força de expressão, já que não tinham muito para falar que não fosse relacionado com o curso. Mariana era o seu nome, e parecia venerar Mário. Observava-o, sabia tudo a seu respeito, inclusive factos que não eram de forma alguma de conhecimento geral. Tinha conhecimento da morte prematura do irmão gémeo de Mário, ainda no ventre da sua mãe, no momento do nascimento. Descobrira que o pai de Mário tinha estado preso na sua juventude por ter violado uma jovem, ambos em estado alcoolizado. Sabia até que Anabela estivera já grávida do namorado, e que ambos haviam decidido abortar numa clínica em Espanha. Não havia ninguém melhor informado sobre eles que não ela. Excepto talvez pela ex-paixão passageira de Mário, Rita. Essa sim, vivia das vidas e dos acontecimentos do casal, sempre à espera de saber mais e acumulando informações. Perseguia-os, controlava as suas saídas e chegadas, sabia até quando estavam intimamente juntos. Alegava não ter um interesse romântico em Mário, mas no seu interior, ela sabia-o. Não ia perdoá-lo, nunca, por aquilo que lhe havia feito, e tinha sim um interesse especial por ele: um interesse de puro ódio, de raiva absoluta, de ambição destrutiva. Iria dizimar o casal até não sobrar a mais infíma partícula de cinza. Esse era o seu objectivo principal, e iria derrubar quem fosse necessário derrubar e quem se revelasse um obstáculo, sem misericórdia. Os seus olhos castanhos destilavam raiva a toda a hora, e nem os piropos da maioria dos rapazes a faziam pensar noutra coisa: ia conseguir. Mas primeiro, ia tirar a "amiguinha das aulas" do caminho. Aquela peste tornara-se um estorvo aos seus planos. Sabia exactamente como a atingir melhor: estudava bem os seus obstáculos. Era só esperar pela altura certa. Talvez nessa mesma tarde, quando Mariana fosse ao café... Só tinha que lhe dar os recursos. E permanecer nas sombras, é claro.

20 de dezembro de 2010

Capítulo I - "Text Me When You're Dead"

Tinha cabelos loiros. Longos, ondulados, bastos. E muito, muito loiros. Quase como se fosse sempre Verão naqueles cabelos. E tal como nos dias de Verão, às vezes chove, e a cor dessa chuva estava representada por aqueles olhos grandes e cinzentos. Profundos, cheios de cicatrizes imaginárias deixadas por sonhos mortos. Nos seus lábios havia uma permanente ameaça de agressividade; o seu famoso 'talk-back' deixara já miúdos e graúdos sem resposta.
Naquela tarde fria, Diana estava na esplanada de um café. Escrevia um relatório sobre a importância do uso das canetas de tinta permanente em cartas de teor profissional; o seu emprego concedera-lhe a função de 'Escritora de Relatórios', função que ela achava inútil. Não havia nada como a possibilidade de alimentar a imaginação e dar à luz ideias de arquitectura. Claro, isso, e sonhar.
Olhou em redor e observou os clientes. Do seu lado direito, a duas mesas de distância, duas senhoras com idade para serem avós de adolescentes conversavam animadamente sobre os cursos de faculdade dos seus netos, gabando-se da Medicina e do Direito que iam passar a fazer parte do já por si extenso histórico académico das suas famílias, enquanto beberricavam os seus chás de baunilha: iguaria que Diana nunca apreciara verdadeiramente, mas que as "avózinhas" daquela cidade pareciam considerar indispensável. No lado oposto da esplanada, a um canto, estava sentado um rapaz de ascendência africana. Francamente belo, não pôde Diana deixar de reparar. Cabelo curto, olhos verdes em forma de amêndoa, um piercing no sobrolho esquerdo. Estava com o seu portátil, e escrevia freneticamente. Usava uma camisola fina e tinha o casaco de cabedal preto vestido. A determinado momento, provavelmente sentindo-se observado, elevou o olhar na direcção de Diana. Fitaram-se durante uns segundos, ele sorriu e voltou ao que estava a fazer. Diana sorriu pra si mesma, mas não demonstrou o mínimo interesse daí para a frente. Continuou a observar a esplanada e apenas mais uma pessoa se encontrava ali: uma rapariga, provavelmente nos seus 20 anos, de cabelo negro preso numa longa trança e olhos negros como carvão. Olhava para o telemóvel que tinha na mão com uma expressão de doentia ansiedade enquanto tamborilava com as unhas da mão esquerda na mesa. Parecia aflita e receosa, a ponto de desatar a chorar a qualquer momento. O telemóvel da rapariga anunciou a chegada de uma mensagem escrita, que ela prontamente leu. Devia conter um longo texto, pois Diana conseguia ver os seus olhos a dirigir-se repetidamente da esquerda para a direita a uma velocidade alucinante, e à medida que lia, os seus olhos de carvão pegavam fogo e iam abrindo mais... Até que chegou ao fim. Por momentos parecia ter sido congelada no tempo, com o telemóvel na mão e a morder o lábio inferior. Intrigada, Diana esperou. Nada. A rapariga parecia empalhada, como o seu avô fazia com os maiores peixes que pescava. Aquela expressão de receio, de medo confirmado, de dor. Lentamente, a rapariga levou a mão até à cadeira do seu lado direito e mexeu na mala. Por breves segundos, Diana questionou-se. Mas mesmo antes de ver o que era, já o sabia. Muito rapidamente, a rapariga encostou o cano da arma à garganta, apontando para cima. E disparou.

13 de dezembro de 2010

Move on?

Entrei na sala. Estava escuro, como sempre. E frio, muito frio, como se o gelo me corresse nas veias. As lembranças do mundo dos sonhos estavam mortas, enterradas naquele quarto havia muito tempo, e com elas estavam também os restos mortais das minhas personagens. Todos eles, em estado demasiado decomposto para serem reconhecidos, estavam sob os meus pés a pedirem-me o dom da ressurreição, mas eu não lhes dei importância. Dirigi-me então à única janela da divisão e olhei lá para fora. Um nevoeiro perigoso esmagava a escuridão da noite, dando a impressão de afogar as estrelas que momentos antes cintilavam lá no alto. Um estalido de madeira pisada alertou-me da chegada de alguém. Alguém que eu estava à espera desde o fim dos sonhos. Com passos vagarosos aproximou-se de mim e falou-me ao ouvido; não me lembro das suas palavras exactas, mas sei que implicava a minha morte. Preparei-me para o que aí viesse, as últimas gotas de sanidade a fugirem-me da cara em direcção ao vazio. Senti um aperto no pescoço: duas mãos ossudas, de dedos compridos e frios, apertavam-me a garganta, e mesmo em perigo não pude deixar de evitar a comparação ridícula aos filmes em que criaturas começam a apertar cada vez mais o pescoço do herói até que algo acontece e vira todos os acontecimentos. E então deixei-me ficar, e esperei, pelo momento em que um milagre acontecesse e eu conseguisses salvar-me. Nada. Apenas o meu reflexo no vidro da janela: pálido, rodeado de sombras, vozes a sibilar ao meu ouvido, a pedirem-me que lhes desse vida novamente... Agarrei no meu último suspiro de força e parti a janela! Toda a escuridão que estava do lado de fora entrou no quarto, inundou a divisão, afogou as criaturas, lavou-me de medos e ensopou as lembranças dos sonhadores. E desapareceu. Ofegante, fui até à janela e olhei para o céu: as estrelas saudavam-me com as suas luzes cintilantes, dizendo-me que tudo havia passado e que podia então dormir em paz. Mas faltava decidir: ressuscitar, ou seguir em frente?

8 de dezembro de 2010

Podes fugir mas não te podes esconder.

Por muito que tentemos fugir de nós mesmos, o nosso eterno 'eu' perseguir-nos-á. Assim como a escuridão foge da luz, nós fugimos da verdade, mas o seu reflexo volta sempre para nos atormentar. Mesmo que seja na forma de uma bela mulher de vidro com olhos amarelos.

Sim. Elas estão de volta.