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7 de abril de 2012

O Altar Do Sol

Apetrechado de rosas brancas, o altar assistia ao triste fim. O pôr-do-sol espreitava, tímido, pelos vitrais da igreja, sendo assim a minha única companhia, para além dela. Sentada nos degraus do altar, a noiva chorava em silêncio com a cara mergulhada no seu vestido branco. Fios de cabelo loiros caíam-lhe do penteado, e a cada minuto que passava a única rosa do seu bouquet de noiva, caído ao seu lado, perdia uma pétala. Levantei-me do meu lugar no banco da frente e pus-me à sua frente. O sol banhava a ambos por igual, mas por cada pétala que morria, maior quantidade de luz atravessava a mulher. Ajoelhei-me e pus-lhe a mão no ombro.
"- Está tudo bem. Não precisas de chorar mais, vais parar de sofrer em breve e tudo não vai passar de um sonho. Está bem?"
Ela levantou a cabeça e olhou nos meus olhos. Os seus olhos cor de mel, mergulhados no dourado do fim do dia, davam-lhe um aspecto frágil, mas de uma beleza inacreditável. Abraçou-me.
"- Porquê? Por que é que ele desapareceu? Por que é que eu fiquei e ele seguiu em frente? Porquê? Não faz sentido, não sei o que fazer...". Soltou-me e olhou de novo dentro de mim. "- Tenho medo."
Olhei-a com ternura e compreensão. Dentro de mim, a serpente da incompreensão apertava-me o coração ferozmente. A injustiça daquelas mortes era demasiado imponente para ser ignorada, mas agora não havia nada a fazer a não ser dar-lhe paz interior, para que o seu fim não parecesse... vazio. Olhei para o chão: restavam duas pétalas. Isso significava que restavam dois minutos até que ela desaparecesse. Peguei-lhe na mão e conduzi-a até à janela, para perto da luz quente que nos embalava.
"- Fala-me do sonho que tinhas com ele." - pedi-lhe, a sorrir.
Foi como se aqueles dois minutos demorassem uma eternidade a passar, mas no bom sentido. Ela estava feliz, ao relembrar os planos que tinha com ele, os sonhos, a casa perto do rio, a criança que sonhavam ter, o cão... A vida.
E foi assim, quando a última pétala caiu, que vi duas vidas desaparecer. A dela, e a que ela podia ter tido com ele.

5 de abril de 2012

Morte Cinzenta

Estava sentado, estático. Olhava atentamente para o nada como se de algo se tratasse, e eu observava-o. As pessoas passavam por ele a conversar, a rir, ao telemóvel ou aos pares, apressadas ou calmamente, e ele continuava absorto na inexistência de algo que o fizesse mover o olhar. Tinha a barba por fazer e não apresentava indícios de ter sofrido qualquer tipo de acidente, mas ainda assim parecia... Cinzento. As pessoas costumam associar o negro como sendo a cor da morte, mas não é. O cinzento significa a ausência de vida, de cores, de alegria, enquanto que o negro se limita a tapar as que possam existir, como uma surpresa que se guarde até ao último minuto.
O homem, com os seus jovens trinta anos, começara a mostrar sinais de reação. Com as mãos nas pernas, o dedo indicador direito começou a tocar freneticamente na perna ao ritmo dos segundos, e ele ergueu o olhar. Para mim. Sentados em frente um do outro, observámo-nos. Podia ler a tristeza no seu olhar, a incompreensão, a solidão, e a crescente curiosidade; ele lia-me, e os meus olhos estariam cheios de vida, de sonhos, de planos e ideias, enquanto que nos seus a inveja bateu à porta. Apercebeu-se da sua condição, e invejou a minha. Calculei que iria virar a cara, que se levantasse e fosse embora, mas não. Continuou a fixar o seu olhar no meu. Os minutos foram passando, até que ele abriu ligeiramente a boca, como quem tenciona falar. Tossiu secamente, provavelmente para sentir se tinha voz, e falou-me, mas eu só o ouvi dentro da minha cabeça.
"- Por que morri?"
As lágrimas mergulharam os meus olhos em empatia. Por que estaria ele, de facto, morto? E pior, por que lhe era permitido estar, assim, entre os vivos? Engoli em seco.
"- Não sei. Do que te lembras?"
Ele olhou para o lado. Estava a tentar lembrar-se de algo, fosse o que fosse, e parecia estar a fazer um esforço tremendo, mas em vão. Eu sabia de antemão que ele não se lembraria de nada. Sabia que a morte leva primeiro a vida, depois as memórias, e por fim a existência da alma. Ele já tinha perdido as duas primeiras, e não havia hipótese de voltar atrás. A morte era impiedosa, severa. De certa forma uma sábia, que nunca mudaria de ideias, mesmo que as suas decisões fossem, aos olhos humanos, injustas.
Ele levantou-se, devagar, como quem está melancólico e preguiçoso, e sorriu-me pela primeira vez. Os seus olhos ganharam cor por momentos, e pude ver que tinha os olhos verdes mais fantásticos que alguma vez vira. Moreno e alto, com roupas vulgares e um relógio no pulso, a sua existência parecia normal novamente. Parecia vivo.
"- Do suficiente."
Segui-o com o olhar enquanto ele se dirigiu a mim. Se se lembrara de algo, isso significava que a Morte, falsamente caridosa, o levaria em breve. Sentou-se ao meu lado e falou-me das suas recordações mais felizes. Dos dois irmãos e duas irmãs, dos seus pais, dos seus amigos. De quando se casou. Da sua filha. Olhei para ele. Estava a sorrir, de lágrimas nos olhos, e olhava para as nuvens. Parecia em paz quando olhou para mim, mesmo antes de desaparecer.
"- Obrigado".

31 de maio de 2011

No Mundo Cor de Manteiga

Não dormi. Passeei, vagueei, perdi-me numa realidade paralela em que o mundo estava virado do avesso. Observei, embasbacado, o que a chuva revelava nas pessoas. Ganância, inveja, ciúme, podridão. Uma sombra que resistia mesmo sem haver luz possível que a fizesse nascer. Desilusão que me consumiu, deu lugar a uma tristeza profunda e a um 'é pena...', dito com mágoa e dor. Decidi refugiar-me no meu próprio mundo, envolvido em três diferentes atmosferas, e fui parar ao continente mais antigo.
Sentei-me de olhos fechados. Não tinha coragem de os abrir, mas o cheiro a limão aliciava-me a ver o que me rodeava, e assim que os abri, sorri. Um mundo cor de manteiga dava-me as boas vindas. Borboletas de neve, grandes como a palma da minha mão, voavam por ali, pousando de rosa amarela em rosa amarela, e nos limoeiros flutuavam grandes limões, maiores que bolas de ténis. Esquilos dourados e algumas pombas castanhas estavam numa clareira ali perto, onde um imenso labirinto feito de sebes de jardim se erguia pelo menos uns dois metros acima de mim. Dele, brotavam pequenas flores, e reparei em duas grandes cobras azuis que serpenteavam à entrada. Enquanto caminhava, sentia-me cada vez mais feliz. Uma felicidade como há muito não sentia; um auge de contentamento, de alegria. Sentia-me eufórico, quase como que prestes a rebentar em mil luzes! O céu, azul claro com tons de cor de pêssego, brilhava intensamente, e parecia haver cada vez mais borboletas de neve a voar por ali. Quando cheguei bastante perto da entrada, as serpentes ergueram metade do corpo e comecei a ouvir uma música de fundo. Instrumental, a roçar o clássico; uma música sem nome nem identidade escondida na minha mente. E a serpente da esquerda falou-me. Perguntou-me o nome e ao que vinha, e eu disse o meu nome e não disse mais nada. A serpente esperou, e o tempo passou, e ficou de noite. A lua cheia brilhava lá no alto, as estrelas piscavam e havia corujas e morcegos a voar de quando em vez. Passou toda a noite, e as serpentes esperaram enquanto eu pensava na segunda parte da resposta. Amanheceu e eu respondi "De facto, não sei.", e as serpentes responderam juntas "A resposta está correcta." e desfizeram-se em areia azul. Entrei no labirinto, e um cheiro intenso a naftalina acariciou-me o nariz. Virei à esquerda, à direita, à direita outra vez, fui em frente e encontrei uma escadaria feita de cordas de nylon preto. Subi as escadas e uma recordação esperava-me, de pernas cruzadas, no topo da sebe mais alta. Ali me sentei com ela, a rir, enquanto as borboletas de neve se transformavam em vidro, as corujas caçavam serpentes azuis, os esquilos lutavam com as pombas e eu começava a cair, muito devagar, até ao sítio onde adormecera.