23 de fevereiro de 2010

Quarto Escuro

Inspiro fundo e entro no quarto. Está escuro. Um leve cheiro a saudade paira na divisão, envolvendo a minha mente em emoções de origem desconhecida. Acendo o meu isqueiro, e observo o pouco que é iluminado: uma mesa, folhas soltas espalhadas pelo chão, uma faca e metade de uma maçã largadas numa cadeira. Esta estranha combinação transmite-me uma sensação de nostalgia. Algo se passou naquele quarto, algo que me faz sentir maravilhado, e culpado. Dou dois passos em frente, e a um canto vejo a cama de dossel, coberta de poeira pela tristeza e pelo tempo; a mesma cama onde sonos intermináveis e tortuosos me acorrentam. Não me apercebo de início, mas estou acompanhado; naquele preciso momento a minha fixação com a cama de dossel toldou-me os sentidos.
Ouço um batimento de coração. E outro. E outro. E à medida que vou dando mais passos no quarto, mais frequente se torna, até que acabo por estar perto o suficiente para que a chama do meu isqueiro ilumine a pessoa: uma mulher de cabelo de vidro. Não entendo como sei esta informação, mas os seus cabelos aparentemente suaves e sedosos são, de facto, de vidro que mais parece diamante, e disso eu tenho a certeza. Os seus olhos amarelos perfuram os meus, e sinto que ela sabe tudo sobre mim. Sinto que me conhece, que me compreende, que me aceita e respeita, que não duvida e que confia nas minhas capacidades. Aproximo-me, observando a cicatriz que atravessa o seu rosto desde a sobrancelha direita ao queixo, passando pelos lábios. Toco-lhe. Os seus olhos tornam-se brancos e chama-me amigo. Despido de medos, abraço-a e peço-lhe que não me abandone, que fique comigo para sempre, que saia daquele quarto que esconde tantos sentimentos maus e feios e que respire o ar puro que há para lá daquelas quatro paredes. Quando a solto, e a mão que segura o isqueiro volta para entre nós, já não ostenta a mesma serenidade. Diz-me apenas ternamente "Não fujas!" e começa a desvanecer-se em fumo branco. O fumo desaparece no ar, apesar de não haver janelas e a porta estar fechada. O quarto parece interminável, e eu decido seguir caminho, apesar de saber exactamente o que lá se encontra. Admiro as paredes decoradas com quadros de belas paisagens e papel de parede cinzento prata, contrastando com a mobília de madeira envernizada, que se resume basicamente a cómodas e mais cómodas. Mais à frente, as folhas soltas começam a escassear, até que sobra apenas uma: uma folha verde, com apenas uma palavra escrita; a palavra que eu mais ansiava ler, descobrir, reaver. A palavra que me ajudará a ser diferente, a ser melhor, a ser eu, que me fará despertar do meu sonho.
Sem aviso, a folha pega fogo. Largo-a e ela vai descendo lentamente como uma folha de Outono, ardendo e chorando lágrimas de sangue. Perdeu a oportunidade de concluir a sua missão, de cumprir o seu objectivo, de salvar o último prisioneiro da casa dos pesadelos. E eu, lembrando-me agora que a maçã fora cortada por mim, após ter morto um dia a mulher dos cabelos de vidro, grito e desespero. Sinto-me encurralado. O tecto desaba sobre mim, e morro.
E acordo.

3 comentários:

  1. qual era a palavra?!:) fiquei curioso lol

    um texto mto visual.. mto bom para uma curta..
    inspirador e com algumas associações mto criativas

    tiro o chapéu!!

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  2. A parte final está deveras fantástica!

    Tens muito jeito para longas descrições. Gosto disso.

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