5 de abril de 2012

Morte Cinzenta

Estava sentado, estático. Olhava atentamente para o nada como se de algo se tratasse, e eu observava-o. As pessoas passavam por ele a conversar, a rir, ao telemóvel ou aos pares, apressadas ou calmamente, e ele continuava absorto na inexistência de algo que o fizesse mover o olhar. Tinha a barba por fazer e não apresentava indícios de ter sofrido qualquer tipo de acidente, mas ainda assim parecia... Cinzento. As pessoas costumam associar o negro como sendo a cor da morte, mas não é. O cinzento significa a ausência de vida, de cores, de alegria, enquanto que o negro se limita a tapar as que possam existir, como uma surpresa que se guarde até ao último minuto.
O homem, com os seus jovens trinta anos, começara a mostrar sinais de reação. Com as mãos nas pernas, o dedo indicador direito começou a tocar freneticamente na perna ao ritmo dos segundos, e ele ergueu o olhar. Para mim. Sentados em frente um do outro, observámo-nos. Podia ler a tristeza no seu olhar, a incompreensão, a solidão, e a crescente curiosidade; ele lia-me, e os meus olhos estariam cheios de vida, de sonhos, de planos e ideias, enquanto que nos seus a inveja bateu à porta. Apercebeu-se da sua condição, e invejou a minha. Calculei que iria virar a cara, que se levantasse e fosse embora, mas não. Continuou a fixar o seu olhar no meu. Os minutos foram passando, até que ele abriu ligeiramente a boca, como quem tenciona falar. Tossiu secamente, provavelmente para sentir se tinha voz, e falou-me, mas eu só o ouvi dentro da minha cabeça.
"- Por que morri?"
As lágrimas mergulharam os meus olhos em empatia. Por que estaria ele, de facto, morto? E pior, por que lhe era permitido estar, assim, entre os vivos? Engoli em seco.
"- Não sei. Do que te lembras?"
Ele olhou para o lado. Estava a tentar lembrar-se de algo, fosse o que fosse, e parecia estar a fazer um esforço tremendo, mas em vão. Eu sabia de antemão que ele não se lembraria de nada. Sabia que a morte leva primeiro a vida, depois as memórias, e por fim a existência da alma. Ele já tinha perdido as duas primeiras, e não havia hipótese de voltar atrás. A morte era impiedosa, severa. De certa forma uma sábia, que nunca mudaria de ideias, mesmo que as suas decisões fossem, aos olhos humanos, injustas.
Ele levantou-se, devagar, como quem está melancólico e preguiçoso, e sorriu-me pela primeira vez. Os seus olhos ganharam cor por momentos, e pude ver que tinha os olhos verdes mais fantásticos que alguma vez vira. Moreno e alto, com roupas vulgares e um relógio no pulso, a sua existência parecia normal novamente. Parecia vivo.
"- Do suficiente."
Segui-o com o olhar enquanto ele se dirigiu a mim. Se se lembrara de algo, isso significava que a Morte, falsamente caridosa, o levaria em breve. Sentou-se ao meu lado e falou-me das suas recordações mais felizes. Dos dois irmãos e duas irmãs, dos seus pais, dos seus amigos. De quando se casou. Da sua filha. Olhei para ele. Estava a sorrir, de lágrimas nos olhos, e olhava para as nuvens. Parecia em paz quando olhou para mim, mesmo antes de desaparecer.
"- Obrigado".

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