21 de junho de 2011

Regressar - parte 02 - Tomás Depois da Vida

Era como caminhar para trás, morrer. A cada passo, revia muitas coisas, inclusive coisas que ele não conhecera em vida, pelo menos que se lembrasse. Uma casa grande, amarela, com telhado verde e um imenso jardim em frente. Um quadro de uma mulher sem cabeça. Um vestido, preto e prateado, tão comprido que poderia rodear a grande casa amarela com ele. Via a mãe, via o pai, via três crianças iguais a ele, todas por volta dos seis anos, ajoelhadas num pequeno parque de areia, a brincar. Via gatos do tamanho de bicicletas, bicicletas do tamanho de autocarros e autocarros do tamanho de gatos. Via ondas de luz de várias cores a passar através de tudo isto, e de repente sentiu as costas numa parede. Não podia recuar mais. Sentia as pernas muito pesadas, mas caminhou em direcção às crianças e sentou-se de pernas cruzadas à frente delas.
A criança da esquerda era muito mais bonita que as outras. Tinha uma pele que parecia seda, olhos brilhantes e estava muito bem vestida. Era igual a si mesmo fisicamente, mas exibia uma expressão de superioridade que Tomás não conhecia em si mesmo. Essa criança olhou para ele fixamente durante uns segundos, depois levantou-se e foi andar de baloiço.
A criança do meio tinha um aspecto mais familiar. Vestia umas calças de ganga escura vulgares e tinha um casaco preto por cima da camisola azul. Ostentava uma expressão serena, e quando olhou directamente para Tomás, sorriu e disse "olá", como quando uma criança faz amizade com outra. Tomás respondeu e ele perguntou "queres brincar comigo?", ao que Tomás respondeu "não sei". Então, a segunda criança levantou-se, virou as costas e começou a correr ao redor do parque.
A criança da direita pegou na mão de Tomás ainda antes de ele ter tido tempo de olhar para ela. Era um Tomás cinzento, triste, com uma aura negativa à volta dele, e dentro dos seus olhos brilhavam gotas de morte. Disse-lhe "vieste porque eu quis, e vais ficar aqui para sempre comigo porque eu quero". Tomás levantou-se, largou a mão do menino e disse "porquê?", mas não obteve resposta. Ao invés disso, as três crianças juntaram-se em frente a ele e disseram-lhe em coro "precisas ir e voltar para poderes criar algo novo dentro de nós", e tocaram no peito uns dos outros, no lugar do coração. Tomás pestanejou e perguntou "ir onde?"; sentiu formigueiro nos pés. Olhou para baixo e viu que estava a desaparecer, deixando fumo branco onde antes estavam os seus pés, as pernas, o tronco. Olhou em frente, e no lugar das crianças estava uma parede branca. Nessa parede, uma palavra escrita a tinta vermelho-sangue: chocolate.

3 comentários:

  1. Palma, admiro este teu jeito :)

    Devias arranjar um nome tão criativo como o "outro" tem ahah

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  2. Texto muito bonito, agradável de se ler, e uma dose de sensibilidade que cai como uma luva.

    grande abraço.

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