19 de junho de 2011

Regressar - parte 01 - Tomás

Era uma vez um menino de onze anos, quase doze. Vivia com os pais e era filho único. Moreno como a mãe e com os olhos azuis do pai, Tomás era uma criança muito medrosa. Tinha medo dos cães grandes que eram levados a passear na sua rua pelos vizinhos; tinha medo dos insectos que entravam pela janela do seu quarto e inocentemente passeavam pela divisão; tinha medo do som dos trovões em noites de temporal; tinha medo dos gritos dos pais ao fundo do corredor, no quarto deles. Gritos cheios da raiva do pai e da agonia da mãe. Apesar de tudo isso, tinha mais medo ainda da sua cama.
Era uma cama grande, antiga, onde podiam dormir três pessoas adultas, e ainda assim sobraria espaço. Era dura e fria, e Tomás não gostava dela. Rangia sempre que ele se movia nem que fosse um milímetro. Até mesmo se respirasse fundo, por vezes estalava. Mas o seu verdadeiro medo motivava-se pelo que estava guardado debaixo dela. Sabia que havia algo debaixo da cama, pois sentia que o chamava, que lhe pedia que espreitasse. Mas todas as noites Tomás resistia a esse chamamento, pois todas as noites os gritos de raiva e os gemidos de agonia se sobrepunham aos rangidos da cama grande e fria. Durante o dia, vindo da escola e ainda com o brilho do pôr-do-sol a espreitar pela janela, olhava para debaixo dela mas a única coisa que via por vezes era uma fina camada de pó, nada mais.
A mãe limpava o seu quarto de três em três dias, mas ainda assim a sua cama estava sempre feita quando regressava a casa, e a roupa do dia seguinte pronta a vestir na poltrona num canto do quarto. A estante ao lado da poltrona enchia-se com os muitos livros que Tomás já lera, mas ainda lhe faltava completar duas prateleiras. Havia sempre um cheiro suave a chocolate pela casa: o pai de Tomás exigia ter um bolo de chocolate diariamente para comer sozinho quando voltasse do emprego. A mãe, doméstica, devia sempre ter a casa imaculada, embora o pai de Tomás lhe desse permissão para não ter de limpar o quarto do filho todos os dias, pois era a única divisão onde ele não precisava de entrar.
Uma noite, no início de uma grande tempestade, a mãe de Tomás teve de correr para a rua a fim de apanhar a roupa estendida no quintal. Saiu e voltou em menos de dois minutos, mas voltou encharcada e com a roupa uma sopa. Pôs rapidamente os trapos molhados num canto e apressou-se a despir o vestido que pingava e as botas lamacentas. Em camisa interior, pegou na esfregona e lavou o chão da marquise, levando em seguida toda a roupa para a máquina de secar a roupa. Ouvira uma vez a mãe dizer para si mesma que detestava o desperdício, e por isso preferia usar a luz e o calor natural para secar a roupa, e assim mantinha o suave cheiro a flores do detergente e do amaciador.
Lavado o chão e seca a roupa, a mãe de Tomás tratou de a dobrar muito bem dobradinha e a pôr no cesto para passar na manhã seguinte. Naquele momento, em que Tomás a observava da ombreira da porta, a porta da rua bateu com força. A mãe correu para ele, deu-lhe um rápido abraço e Tomás correu para o seu quarto. Fazia já este ritual há muito tempo, quase desde que aprendera a andar, pois sabia que a sua presença irritava ainda mais o seu pai. Assim que fechou a porta do quarto, começou a ouvir os gritos do pai e as respostas baixas da mãe, e quanto mais ele se exaltava mais a tempestade se tornava agreste e menos ele ouvia as respostas da mãe. Sentou-se na cama, e sentiu um aperto forte no peito. Parecia ter espinhos de rosa a espetar-se na carne e a escorregar até ao seu coração, mas a barragem de sentimentos que construíra nos últimos anos ensinara-o a conter as lágrimas, e engoliu em seco, quase sentindo os espinhos na garganta. Ouvia agora um cão ladrar, abafado pelo ribombar dos trovões, e o seu pai a gritar, intervalado pelo choro profundo da sua mãe. Deitou-se de barriga para baixo e tapou a cabeça com a almofada.
Silêncio. Apenas um muito longínquo roncar, que sabia ser da trovoada, ele ouvia. Sentia a cama fria na sua cara, e sentiu medo. Os lençóis pareciam acariciar a sua cara, mas ao mesmo tempo sentia os rangidos da madeira. Lentamente, era como se mergulhasse no próprio colchão, e era como se estivesse a mergulhar em água fria, gelada, e se estivesse a afogar. Demorou uns segundos até se aperceber que estava alguém (ou alguma coisa) a empurrar a almofada, sufocando-o. Começou a espernear, a tentar gritar, mas era como se estivesse dentro de água: não ouvia nada, não sentia nada, não via nada. A barragem das lágrimas desmoronou-se, e levou  a vida de Tomás com ela.

7 comentários:

  1. God
    quase que chorei hein, bem forte este texto jesus.
    mas gostei :)

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  2. Muito bom, adorei, para variar! ;)
    Consegues construir muito bem os ambientes :)
    Continua!

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  3. Muito Bom! Forte, muito forte, mas fantástico!!:)

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  4. Muito bem escrito, e forte...
    Gostei mto
    Mda @

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  5. Drama da vida real, o mundo anda cheio de predadores, resta a nós fazermos deles presas =p

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  6. Gostei bastante... tens uma bela prosa :)

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